segunda-feira, 1 de novembro de 2010

A estética criadora de Noel Rosa

Opção pela cultura popular

É provavelmente pela originalidade que Noel Rosa ultrapassa sua própria época, embrenhando-se na nossa por atingi-la em seus próprios dilemas. Atinge igualmente a sensibilidade humana e influencia gerações pela capacidade de atribuir, com legitimidade, novos significados ao universo humano. O compositor explora toda a riqueza da linguagem para expressar suas relações com o ambiente, utilizando uma língua viva, que foge aos dicionários e gramáticas. Uma língua brasileira, que há muito já passou do português.

Como Noel percebeu a realidade? Em que ambiente criativo? Que valores éticos, estéticos, políticos e sociais estão presentes em sua obra? De que forma ele ressignifica o universo humano? Vamos aos poucos, trazendo toda semana composições de seu repertório que nos dão essas respostas.

Noel Rosa começou sua vida como compositor aos 19 anos, quando estudava medicina. Não demorou muito tempo para que o Brasil perdesse um futuro médico e ganhasse um de seus mais representativos compositores da cultura popular. A troca do bisturi pelo pandeiro frustrava as expectativas sociais de sua época. Na autobiográfica “Filosofia” o compositor declara a rejeição da sociedade, mas afirma que prefere ser “escravo” do samba que da hipocrisia:

O mundo me condena, e ninguém tem pena
Falando sempre mal do meu nome
[...]
Vivo escravo do meu samba, muito embora vagabundo
Quanto a você da aristocracia
Que tem dinheiro, mas não compra alegria
Há de viver eternamente sendo escrava dessa gente
Que cultiva hipocrisia

Palmeira do Mangue Não Vive na Areia de Copacabana
No samba “O ‘X’ do Problema”, o compositor trata da dificuldade que uma pessoa nascida e criada no Estácio de Sá teria, na iminência do estrelato artístico, para mudar-se do bairro suburbano. Mesmo diante de uma proposta bastante atrativa (ser estrela de cinema) o ele não concebe a ideia de sair daquele bairro, berço da primeira escola de samba. Na composição, o subúrbio e a região nobre são representados, respectivamente, por dois ecossistemas: o mangue e a areia de Copacabana. O compositor recorre à metáfora para retratar a preferência pela vida na periferia.

Já fui convidada para ser estrela do nosso cinema
Ser estrela é bem fácil
Sair do Estácio é que é o X do problema
[...]
Nasci no Estácio
Não posso mudar minha massa de sangue
Você pode ver que palmeira do mangue
Não vive na areia de Copacabana

A identidade de sangue com o Estácio incorpora todo um universo, que representa o bairro como cotidianidade popular, convívio humano e convívio na roda de samba, que afirma sua sedução comparativamente ao mundo opulento da fama. O mangue, lamacento e vívido. A areia, brilhante e estéril.

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